Àṣẹ, Ọfọ̀, Macumbas e afins…

Òjìji Ìgbẹ̀hin aka Ogunmide
6 min readAug 22, 2020

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Pensamentos…
Pensamentos…

Eu tenho feito novas amizades macumbísticas nessa quarentena e conversando com algumas pessoas de Axé sobre um assunto, que eu na verdade nunca dei muita bola, mas convenhamos que na quarentena alguns de nós (inclusive eu) pegou a mania de refletir sobre tudo ou quase tudo que acontece, né?!

Eu falo da famosa Macumba.
Sabe Macumba? Feitiço?

Então vamos lá; Meu intuito aqui é a tentativa de apresentar uma nova perspectiva baseada no poder das palavras, nos ciclos da vida e tretas.

Sim. Eu ia nas rodas de samba e cantava “eu vou botar teu nome na macumba. Vou procurar uma feiticeira, fazer uma quizumba pra te derrubar…ô iáiá”, mas, na verdade, foram pouquíssimas as vezes que eu parei para pensar a respeito do assunto. O que leva alguém a fazer um “feitiço” para prejudicar alguém e quais são as consequências disso e tudo mais? Na minha cabeça é algo bem… estranho. Uma dessas pessoas com quem tenho conversado inclusive, me contou altas histórias sobre os feitiços que um povo que ela conheceu fazia. Era feitiço para o irmão, para outros parentes, pra esposa, pra todo mundo. Todo mundo fazia macumba pra todo mundo.

Complicado e lamentável.

Bom, dentro de uma cosmopercepção africana, muito provavelmente os 15 eixos civilizatórios africanos compartilham do mesmo pensamento quando falamos a respeito da circularidade energética. Sabe aquele rolê de que o universo reaproveita tudo e que a energia é algo que se transfere? Justamente, porque tudo é cíclico. O que chamam de morte, para nós que somos nagôs, é um RETORNO -finalização de um ciclo- a massa de origem. A roda de um Ṣiré numa casa de candomblé, uma roda griot, uma roda de samba, roda de capoeira, “tudo o que vai, volta”, a terra redonda (risos) e o movimento de rotação da terra, “as voltas que o mundo dá”, a lei do retorno e etc. Tudo na vida é circular. O próprio “Ubuntu” (do Zulu que significa “sou porque nós somos” que na verdade é retirado de uma frase “Umuntu ngumuntu ngabantu” que significa algo como “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”) é algo, completamente, circular pois a energia harmônica não pode, simplesmente, ir de uma ponta a outra e se dissipar. Se “eu sou porque nós somos”, então, é algo contínuo, e se é contínuo é circular — nessa perspectiva.

Bí o ṣe rere yó yọ sí ọ lára; bí o kò ṣe rere yó yọ sílẹ̀
Se suas ações forem boas, os benefícios retornarão para você; se suas ações não forem boas, elas serão aparentes para todos.

O que muitos de nós, filhos de axé ou não, AINDA não entendemos e é algo que precisamos fazer pra ontem é que o Inferno, simplesmente, não existe (para nós). Não tem um lugar pra onde você vai pra sofrer, depois da morte, por tudo de ruim que você fez com os outros. Se você, realmente, se dá o trabalho de fazer algo, exclusivamente, para prejudicar alguém, você em algum momento vai receber essa energia de volta. É um fato. Da mesma forma, que se você usa o seu àṣẹ para dar amor, isso vai retornar pra você também. Pode levar o tempo que for, mas o retorno é certo. Mas agora pensemos: Uma pessoa que faz um feitiço silencioso para prejudicar alguém é tão ruim quanto alguém que deseja o mal para o outro de todo o coração?

Ọmọdé tó ń w’òdí àgbàlagbá, ọmọ lẹ́yìn á ṣe irú ẹ̀ fún un.
(literalmente) “A criança que olha a bunda do mais velho, fará o mesmo a quem vem atrás dela” (Significa que a criança está olhando as costas do mais velho, e outra criança mais nova está olhando as costas de quem está olhando o mais velho, num ciclo de aprender com o comportamento de quem está na nossa frente)

Quando falamos sobre circularidades, estamos falando também sobre ciclos negativos. Ciclos negativos estes que podemos buscar identificá-los e quebrá-los. Existem ciclos negativos que perpassam gerações dentro de uma família e/ou negatividades que se arrastam durante anos sem tratamento adequado. Desejar o mal ao outro (falarei mais a frente sobre) pode também se tornar um ciclo negativo. O provérbio acima fala sobre a responsabilidade dos mais velhos em dar bons exemplos para as crianças, pois estas estão olhando atentamente o seu comportamento, e as que virão depois farão o mesmo, e assim sucessivamente para que a harmonia em uma comunidade possa prevalecer.

Quando falamos sobre palavras, estamos também falando sobre encantamentos. Uma reza é um encantamento. Quando uma rezadeira (quem é preto e nasceu nos anos 80 com certeza já foi numa rezadeira) começa com aquele galho de folha proferindo aquela oração, ela está na verdade -dentro de uma visão Yorùbá- utilizando do Àṣẹ dela (que definirei mais a frente) para curar algo maligno em alguém. Outro exemplo, é a frase “Èébú ò so” (palavras abusivas nunca — crescem e- frutificam em ninguém). Em terras Yorubanas, quando alguém está falando algo ruim, coisas pesadas e etc, os Yorùbás usam isso como escudo. Podemos definir como uma espécie de Ọfọ̀ (encantamento. Ọ = Alguém ou algo que / fọ̀ = dizer/falar / ‘Algo que fala’) de proteção. “Suas palavras ruins não frutificam aqui nesta pessoa, querido(a)”. Existem vários tipos de Ọfọ̀, os mais poderosos sendo feitos com a combinação de èwe (folhas) e o àṣẹ da pessoa, mas o importante para nós aqui é: As palavras tem poder. Exatamente, por este motivo, ouvimos aquela bendita frase: “Você não pode saber disso agora” dentro do candomblé. E não podemos mesmo, se ainda não estamos prontos para entender aquilo e entender também como usar aquilo. Alguns ẹbọ (ebó) por exemplo, são ativados através de palavras específicas (lembra da rezadeira?). Feitiços idem. Se não estamos atentos ao poder de certas palavras, não devemos pronunciá-las. Agora, tudo isso vai de encontro com o “fazer o mal”. Mas por quê? A resposta é mais simples do que parece.

Digamos que, todos nós temos poder para isso e este poder emana do nosso Àṣẹ. Esta palavra -Àṣẹ- possui vários significados. Pode ser poder, autoridade, comando, também é utilizada como “Assim seja”. Eu gosto de dizer que é “poder para realização”. Àṣẹ pode ser dado, pode ser recebido e pode também ser trabalhado. Bom, dito isso devemos entender que nós podemos sim usar o nosso àṣẹ de forma destrutiva. Quando nós usamos o nosso àṣẹ para realizar/desejar mal ao outro, nós estamos literalmente utilizando a nossa energia vital, o nosso poder de realização, para atingir o outro. O desejar o mal para alguém já é um feitiço maléfico por si só. E como eu disse antes, no final de tudo, volta pra nós.

Entender a espiritualidade Yorùbá é entender que Ọlọ́run não nos deu o seu sopro divino, esse poder, para realizarmos malefícios, mas sim para evoluirmos o nosso àṣẹ e utilizarmos para construir coisas boas. Trabalhar essa energia ao ponto de somente com palavras, ou às vezes até mesmo sem elas, melhorar o dia de quem está ao nosso lado. Sabe quando nos sentamos aos pés daquele mais velho ou daquela mais velha com a voz mansa que acalma o nosso coração só com 3 palavras? Ou então aquela mais velha que só com um sorriso nos cura a alma? Ou um abraço que tira todas as negatividades do nosso corpo e nos faz chorar? Não é a toa que isso acontece. Uma pessoa com 30, 40 ou 50 anos de trabalho em conduzir o seu àṣẹ por um bom caminho tem,literalmente, o poder de curar. As palavras desta pessoa acabaram por se tornarem Ọfọ̀.

Lembro de uma história que uma amiga me contou onde ela clamou a Ṣàngó por justiça em uma situação pelo qual ela estava passando e sim, a justiça foi feita. O Oṣé Ṣàngó (Somente Xangô tem o poder e autoridade para usar o machado, por isso Oṣé Ṣàngó e não somente Oṣé) veio e resolveu o problema. Porém ela aprendeu uma dura lição; A justiça não é algo que funciona da forma X porque queremos que seja assim. Ṣàngó trás a justiça, pura e simplesmente. Se você, que clamou por Ṣàngó, está errado(a) na situação, vai sobrar pra você também. Então, quando você prejudica alguém consciente do que está fazendo, dá pra acreditar que realmente não vai sobrar nem um pouquinho para você quando a justiça vier?

Espiritualidade africana em geral é evolução circular sempre. Por isso o ditado:”Tudo o que vai volta”.

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