O texto mais difícil de todos: Quem é Ògúnmidè Kìnìún?

Òjìji Ìgbẹ̀hin aka Ogunmide
10 min readJul 29, 2020

--

Hoje resolvi escrever sobre qualquer coisa relacionada a mim mesmo. O intuito aqui não é ensinar ou entreter. Só por pra fora qualquer coisa que vier a tona. Eu mesmo me propus a escrever sem editar nada. Então,aí vai…

Vamos começar falando sobre o Léo (eu, no caso):

Meu nome é Leonardo -do latim, Leão Bravo - e por acaso Ògúnmidé Kìnìún =O Leão Ògún chegou - tem a ver com o meu nome ,né?! Esse nome, eu recebi quando fazia parte de um grupo de pessoas Yorùbá ao redor do mundo, e eu era o único que estava no Brasil. Achei estranho ele me dar o nome sem saber que eu era um Ọmọ Ògún (Filho de Ògún) porém todos deveriam ter um nome Yorùbá no grupo e eu fui batizado pelo líder do grupo com este nome e acabou que passei a usar nas redes sociais.

Como eu sempre digo, eu não sou confirmado ainda. Fui suspenso por Ògún, que me escolheu para cuidar dele -não com medo, mas com respeito a este grande e importante Òrìṣà- do qual sou suspeito pra falar. Minha confirmação não saiu ainda por motivos de força maior; Infelizmente, no ano passado cumprimos luto de um ano pelo falecimento da nossa Grande Ancestral , Mãe Stella de Ọ́ṣọ́ọ̀sí, e ficou para este ano, porém Corona Vírus aconteceu. Independente de tudo, continuo paciente e tranquilo. Existe um ditado Yorùbá que diz:”Àbọ̀ ejò kì í gbé isà” que significa “Deve-se agir de acordo com as circunstâncias”.Então,cá estou eu esperando o meu momento chegar. Outra coisa legal ,é que algumas pessoas pedem para que eu comente ou escreva sobre várias questões relacionadas ao Candomblé. Coisa que eu corro de fazer. Primeiro, porque existem um número incontável de pessoas mais velhas e muito mais sábias que eu fazendo isso por aí e segundo, porque seria falar sobre algo que eu literalmente não domino (ainda não fui confirmado, né?!). Meu foco, nos meus textos e estudos,é cultura Yorùbá no geral e raramente cito algo relacionado ao culto especificamente. Quando o faço, me preocupo para que seja com muito respeito e tentando não furar fila.

Sobre meus pais, poderia escrever por dias! A minha mãe é uma mulher fantástica. Preta, católica, uma mulher de muita fé e força, que já perdeu dois maridos que amou muito ao longo da vida. Criou três filhos pretos adolescentes (sou o mais novo) após o falecimento do meu pai e, com muita dor e luta, conseguiu dar aos três uma formação que ela mesma não teve. Se formou em Serviço Social depois dos 45 anos e hoje, trabalha na prefeitura de Caxias atuando na luta contra a violência doméstica. Provavelmente, a pessoa mais inteligente que eu conheço e se eu fui abençoado com a capacidade de enxergar as coisas um pouco mais a frente, ela com certeza consegue enxergar, se não todas, a grande maioria das possibilidades e decidir qual a melhor decisão a ser tomada. Minha admiração por ela não tem fim. Sempre ouvi as pessoas dizendo que o respeito que eu tenho pela minha mãe é algo muito bonito. A ponto, de eu que falo muito palavrão, não soltar nenhum, se eu estiver na presença dela. O buraco é bem mais embaixo.

Meu pai foi um homem preto que trabalhou desde os 10 anos de idade. Fazia bicos aqui e ali, trabalhou em obras, foi militar, também ajudava a carregar e descarregar caminhões e por fim acabou se tornando caminhoneiro. Por vezes, ficava semanas na estrada sem poder voltar para casa. Naquela época, celular não existia. Meu pai ligava de um orelhão de ficha para o telefone da empresa, que ligava para a clínica onde minha mãe trabalhava, que passava a informação para a minha mãe dizendo que ele estava bem, isso com um delay enorme. Foi uma época bem complicada, mas eu nunca tive a sensação de ter um pai ausente. Aliás, era totalmente o inverso disso. Quando meu pai estava em casa ele cozinhava pra nós -cozinhava melhor do que a minha mãe, apesar de não lavar um copo depois- contava sobre as viagens dele, rezava os filhos quando estavam doentes -meu pai tinha este conhecimento, uma vez que muitas ancestrais da minha família eram rezadeiras- tocava violão, comparecia na reunião dos pais na escola, o que era um alívio ,pois era bem mais tranquilo do que a minha mãe.

Às vezes, nos levava para passear na ilha de Paquetá, que era o local favorito dele. As memórias são lindas e me inundam enquanto eu escrevo. Acordávamos as 5 da manhã (única parte ruim) para poder pegar a barca bem cedo e aproveitar o máximo do dia. Hoje,eu olho para trás e vejo que o meu pai era uma verdadeira rocha. Inabalável. Até estressado conseguia passar calma, mas você sabia que as coisas não estavam nada bem. Era de dar medo. Forte como um touro, capaz de carregar dois sacos de cimento nos ombros e pasmem, tinha 1,65 de altura -eu tenho 1,86 e minha mãe tem 1,72. Vai entender. Ele contava os dias, literalmente, para se aposentar, mas não conseguiu realizar o seu sonho, que na verdade era o nosso sonho. Meu pai sempre dizia que quando se aposentasse, passaria mais tempo com toda a família. Infelizmente, o sistema em que vivemos, o mesmo que extermina pretos e pretas todo o dia,não permitiu que isso acontecesse. Meu pai veio a ser assassinado no dia 29 de outubro, véspera do meu aniversário (nasci às 6 da manhã do dia 30). Aos 12, eu estava, literalmente,enterrando o meu pai.

Voltando um pouco mais na minha história, eu penso que ,provavelmente, tive a infância mais legal de todas. Eu moro até hoje, em uma espécie de quilombo (tanto na geografia quanto nos valores), composto por 10 casas, onde todos temos ligações sanguíneas. Subíamos em árvores para comer as frutas entre as refeições, pois a comida não faltava, mas era bem pouca -eu hoje nem como mais jaca, de tanto que comi quando era novo. Corríamos das abelhas e marimbondos, brincávamos de descer o morro em cima de uma tábua escorregadia -pegávamos escondido o óleo da minha avó pra passar, fazendo ela deslizar mais rápido, e apanhávamos por isso em uma coça coletiva que chamávamos de “roda de coro”- fazíamos patinete (carrinho de rolemã com rodas de bilha, que quase todo dia acabava em um acidente, mas isso é só um detalhe), bola de gude, pipa, brincávamos de pique esconde com nossos tios e tias e sempre nos reuníamos em volta de uma fogueira e escutávamos as histórias da minha avó e das minhas tias mais velhas. Se a escola pra mim era uma prisão, minha família representava a liberdade. O meu lugar seguro. Até hoje mantemos a tradição de nos reunirmos todo dia por volta das 16h na casa da minha avó para tomar café e papear. Fora as comemorações! Quais?! Não faz diferença; a filha de alguém concluiu o ensino fundamental? Churrasco pra comemorar. Alguém conseguiu algo que queria? Peixada pra comemorar. Nasceu uma criança?! Super festa pra comemorar! Ninguém é rico, muito pelo contrário, mas pense em festas fartas, multiplique por dois agora.É isso ai! E apesar de tudo isso, brigas e desentendimentos na minha família são muito raros, de uma forma que assusta pessoas que não são da família. Eu sempre brinco dizendo que para alguém não gostar da minha família, a pessoa precisa fazer um esforço desumano.

Até hoje, quando estudo sobre cultura Yorùbá, percebo como a minha família mesmo majoritariamente Católica ainda sim é uma família totalmente africana, não só pela grande maioria ser constituída por pessoas pretas, mas também po seus valores. Na cultura Yorùbá, existe um termo chamado Ọmọlúwàbí (Ọmọ = Criança / filho¹, (o)lú = Mestre / Senhor de boas características / proeminente , (ì)wà = caráter, = nascer, dar nascimento) que é um termo que define uma pessoa de bom caráter. Ademakinwa Adebisi define Ọmọlúwàbí com estas palavras no texto “Yoruba Traditional Education Philosophy in the Evolution of a ‘Total Man’”

“Em contraste com ‘Ọmọ tí a kò kọ́’ (A criança que não foi ensinada/formada) é bem educado e, portanto, é um ‘homem completo’ e ser educado na palavra de Awoniyi significa que o indivíduo foi educado para respeitar a velhice, para ser leal aos seus pais e tradições locais, para ser honesto em todos os negócios públicos e privados, para ser dedicado ao dever e estar pronto para ajudar os necessitados e os doentes, para ser um epítome de simpatia, sociabilidade, coragem e desejo ardente de trabalho e muitas outras qualidades desejáveis.”

Eu sempre ouvi meus avós dizendo que todos os mais velhos deveriam ser pais e mães dos mais novos. Meus avós tiveram mais de 10 filhos, fora os filhos que ganharam com a vida. Na cabeça deles, um pai e uma mãe sozinhos não conseguem dar conta da educação de um filho, que dirá mais de um. Formar um(a) Ọmọlúwàbí não é uma tarefa que deve caber só aos pais e sim a comunidade inteira -meus avós, sem educação acadêmica, católicos e etc, já tinham essa concepção, que com certeza foi herdada dos pais deles e assim sucessivamente. Então, foi assim que cresci; com muitas mães, muitos pais e aprendendo com todos, sendo cuidado por todos, dormindo na casa de todos, e em algumas ocasiões, sendo punido por quem estivesse no local. Na minha família, nunca existiu a frase:”Quando seus pais chegarem…”, pois todo mundo tinha abertura pra tudo. E se caso, houvesse falha de caráter por parte do filho de alguém, a culpa seria de todos. Sabe aquele “Sou porque nós somos”? Minha família sempre o praticou mesmo sem saber da existência do provérbio.

Eu fui ateu durante alguns anos já na fase adulta. Eu não acreditava no Deus branco católico e lembrando a respeito de tudo o que eu aprendi da Bíblia nos tempos do catolicismo, só conseguia pensar que se aquele Deus branco existisse de fato, ele seria um grandessíssimo … filho da virgem (vocês entenderam, né?). Depois de anos,sem acreditar em nada resolvi visitar uma casa de candomblé a convite de um Tio — que inclusive hoje em dia é um mais velho que me ensina MUITO. Depois dessa primeira visita,me tornei aláfẹ́tigbọ́ (falarei mais a frente sobre) da casa durante muitos anos. Nesta primeira visita ,algumas coisas me marcaram muito, mas uma delas mais do que as outras; quando eu fui até esta casa pela primeira vez, eu vi uma cena do Bàbá (que hoje é meu Bàbá) dançando com todos os Orixás no meio do barracão. Todos vestidos, dançando em roda. Acabou que só eu vi essa cena, porque ninguém no dia desta visita (era uma festa pra Ọ̀ṣọ́ọ̀sì) viu a mesma coisa que eu vi, perguntei e tudo mais, mas ninguém sabia do que eu estava falando. Deixei rolar, né?! Não queria pagar de doido.

Nesta casa,existe um projeto chamado Aláfẹ́tigbọ́ (a palavra significa ouvinte). Este projeto antecede a própria casa, na realidade. Existem pessoas que não são filhos da casa mas que querem aprender mais sobre a religião, então as reuniões com os aláfẹ́tigbọ́ acontecem como uma forma de introduzir e desmistificar coisas relacionadas ao Candomblé, e de quebra a pessoa acaba conhecendo os filhos da casa, fazendo amizades e etc. Ao decidir se tornar Abiyán (óbvio que é uma escolha individual), a pessoa já sabe o que buscar ali, a forma como a casa funciona, seus projetos sociais e outras coisas. Eu fui um aláfẹ́tigbọ́ por 3 anos e quando dei meu primeiro Borí -e me tornei filho da casa- me lembro exatamente da vibração positiva das pessoas presentes, cuja maioria eu já tinha um vínculo criado. Me lembro da alegria das pessoas festejando a minha cabeça e cantando pra ela, e percebi que de fato era lá que eu queria ficar. Dentro destes três anos, vale dizer que eu visitei muitas outras casas, mas não senti a mesma coisa que senti no Àṣẹ Ògún Àlákòró.

Kò sí Òrìṣà tí kò ní ìgbẹ́
Não há Orixá que não tenha um arbusto²

O Candomblé pra mim se tornou não só uma luz na minha estrada, mas também me ensina diariamente a ser sujeito da minha própria história. Me ensina que se eu plantar tomate, não vou colher cebola de jeito nenhum e que Òrìṣà é por mim tanto quanto eu desejo que seja, as vezes até mais, mas tem que partir de mim. Continuo errando, continuo sendo imperfeito, e ainda tenho orientações que foram dadas pra 2019 que até hoje não foram feitas, mas… Eu sei que para cada passo que eu dou na direção da ancestralidade, ela dá 5 na minha direção, mas se esse meu passo não existir, então nada vai existir. Ter me tornado filho de axé foi de longe uma das três melhores coisas que já aconteceram na minha vida e sempre serei grato por esta benção. A partir disso, curioso como sou, e apesar de ter um Bàbá (Bàbálòrìṣà)que gosta de ensinar e explicar minuciosamente os “porquês” das coisas, ficava pensando em como o culto chegou a ser o que é hoje e foi aí que comecei a estudar a cultura Yorùbá. Fiz amizades com irmãos e irmãs do continente, passei a estudar a língua e hoje escrevo sobre o pouco que aprendo não com o intuito de ensinar, mas de despertar qualquer positividade em outras pessoas que talvez tenham a mesma curiosidade que eu. Quando falamos a respeito de Ṣàngó, por exemplo, há a possibilidade de buscar a raiz da existência desse importantíssimo Òrìṣà -A cidade natal de Ṣàngó é Nupe, também conhecida como Tapa. Seu pai é Ọ̀ránmíyàn, vem de Ifẹ̀ e é considerado o primeiro Aláààfin de Ọ̀yọ́. Seus descendentes permanecem em Ifẹ̀ até hoje- e acredito que isso por si só já é algo para se maravilhar. Fora o contato direto com o ancestral. O abraço, o carinho… impagável.

Chegamos ao fim. Quero finalizar o texto com a mesma dica que eu dei no meu primeiro texto aqui no medium e que é um exercício diário para mim.

A kì í nìkan jayé ( Não se desfruta uma vida sozinho). Coletividade é tudo.

Àṣẹ.

¹ A palavra Omo significa tanto filho quanto criança. Ou seja, uma criança é filho(a) da comunidade inteira.

² ìgbẹ́ neste caso é uma referência as ervas medicinais vinculadas aquela divindade específica

--

--