A felicidade na cosmopercepção Yorùbá. Afinal, o que é ser feliz?

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Por várias vezes me fizeram a seguinte pergunta:”Você é feliz?!”
Minha resposta como uma pessoa chata e cética sempre foi a mesma:”Tenho momentos de felicidade, como qualquer pessoa. Feliz o tempo todo ninguém é!”.

Bom, vamos ao que interessa. Afinal, o que é felicidade?

Em uma visão de mundo européia, que inclusive é a fonte de onde grande parte da sociedade bebe de informações a vida inteira, a felicidade é fim. Para Sócrates, felicidade é o autoconhecimento. É feliz quem conhece a si mesmo. Para Platão, a felicidade é a prática do bem ético. É feliz quem pratica o bem. (Eu prefiro nem comentar isso. risos). Já Aristóteles define a felicidade como ”aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca por causa de outra coisa”. Os 3 acreditam que a felicidade é o fim e deve ser alcançada pelo homem. Nós fazemos coisas para ficarmos felizes. Bebemos, saimos com amigos, bebemos com amigos, festas, etc. Nós desejamos coisas que nos farão felizes o tempo inteiro; Dinheiro, carros, entre outras coisas, porque acreditamos que tudo isso nos trará felicidade. Ou, pelo menos é como somos ensinados. Óbvio que ninguém vive sem dinheiro em uma sociedade, mas não é essa a questão. Buscamos coisas que são meios para a obtenção da felicidade, enquanto a felicidade é um fim em si mesma. Autossuficiente.

Para os Yorùbá, a visão da felicidade é algo um pouco diferente. Na cultura Yorùbá e em outros eixos civilizatórios africanos, quando um ancestral vem ao mundo, ele escolhe uma Ìyá (mãe) para ser o seu canal de entrada ao mundo. Essa escolha é extremamente importante. Existe uma passagem, só a nível de informação, da Oyèrónkẹ́ falando em algo relacionado a este contexto.

“Então, nesta tradição, a figura de Ìyá é representativa da humanidade –
elas são o ser humano arquetípico do qual todos os humanos derivam.
Socialmente, ìkúnlẹ̀ abiyamọ é investido de muito significado. Na cosmologia, Ìkúnlẹ̀ lembra àkúnlẹ̀yàn (o ato pré-terreno de ajoelhar-se diante da Entidade Criadora para escolher o seu orí). É significativo que a escolha mais fatídica que qualquer indivíduo faz neste momento pré-terreno crucial seja a escolha de sua Ìyá. Além do fato de que Ìyá é aquela que introduz uma pessoa na vida terrena, há o medo adicional de que alguém possa erroneamente escolher uma Ìyá que tenha uma expectativa de vida curta. É provável que tal escolha resulte em tragédia, porque um bebê ou criança sem Ìyá é altamente vulnerável e é improvável que sobreviva. O ditado ọmọ k’oni ohun o ye, ìyá ni kò je e — uma criança sobrevive e prospera apenas pela vontade de Ìyá — sugere o papel fundamental que Ìyá desempenha no bem-estar da criança.”

Bom, a questão é: Antes de uma criança nascer (na verdade, quem nasce são os pais, mas isso é assunto pra outro dia), existia(ainda existe, mas em menor escala) a prática de perguntar a este ancestral qual o seu intuito com a sua vinda / retorno (falaremos mais sobre isto a frente). Isso pode ser traduzido como “Missão”. Todos nós temos uma missão em vida. Se vamos cumprir a missão ou não, ai é outra história. Existem pessoas que podem nos auxiliar com esta missão e essas pessoas dentro da cosmopercepção¹ Yorùbá, possuem o nome de Bàbáláwo. O Bàbáláwo é quem detém o conhecimento sobre os Odús (caminhos / destino) e podem nos auxiliar a cumprir esta missão da melhor forma possível.

Tá, mas o que isso tem a ver com felicidade?

A felicidade na cosmopercepção Yorùbá está em “get the shit done” (resolver a treta). A felicidade é o estado de gozo com o que se realiza esta treta. Não necessariamente uma boa vida está relacionada a riqueza e conforto, como dentro de uma visão ocidental de mundo. Na verdade, pode-se ser feliz levando uma vida bem “humilde”. O Bàbáláwo, já citado anteriormente, pode ser um exemplo. Ao estudar durante MUITOS ANOS para se tornar Bàbáláwo, este ser entende que a sua missão é basicamente restaurar a integridade das pessoas e da sua comunidade e/ou mantê-la funcionando bem,e entendendo também que ele não vai ficar rico com isso (pode ficar rico com outras coisas.kkkk). A felicidade na vida de um Bàbáláwo vem através da restauração do caminho de outras pessoas pois ele está cumprindo a sua missão na terra com maestria. No entanto, se ele possui todas as riquezas materiais e as pessoas não obtêm o tratamento que necessitam, certamente ele não será plenamente feliz porque não estará cumprindo o destino.

Como a felicidade está intimamente relacionada à realização de seu próprio destino, o povo iorubá descobre o propósito e a direção da vida por meio de rituais como ẹsẹ̀ ń tayé; (primeiro passo para o mundo). “O objetivo principal é descobrir que tipo de criança é, o que é tabu para ela, o que deve ser feito para preservar seu bom destino ou retificar um infeliz ”. (Idowu, 1996: 192)”

Extremamente importante também é dizer que a felicidade individual deve estar alinhada com a felicidade comunitária. Qualquer indivíduo dentro de uma comunidade Yorùbá que queira viver uma vida que não esteja de acordo com o objetivo principal daquilo que a comunidade acredita que seja o melhor para todos, não pode ser considerado uma pessoa feliz. Sim, ele vai ter momentos de felicidade como qualquer um, mas uma felicidade plenamente individual não é completa. Passar por cima de tudo o que a sua comunidade acredita ser o melhor exclusivamente para satisfazer objetivos próprios não é felicidade.

Então sabemos que a felicidade é uma realização individual e comunitária e que qualquer indivíduo que viva uma vida que não esteja de acordo com o foco principal daquilo que é a sua missão ou a para a vida geral da comunidade, não é uma pessoa feliz mesmo que encontre toda a riqueza do mundo. Imaginem por exemplo um grande guerreiro Yorùbá que ama guerrear e se sente completo sempre que está no campo de batalha. O destino desta pessoa é ser um grande guerreiro e ele trabalhou duro para cumprir este destino. Porém ele não vai viver a vida inteira dentro de uma guerra sem fim. Posso até dizer que a maior parte de sua vida será ausente de guerras. Esta pessoa precisa estar preparada para ser mais uma dentro de sua comunidade quando ele não está guerreando. Caso contrário, este guerreiro poderá até incitar guerras exclusivamente para benefício próprio. Além de um grande guerreiro, ele deverá ser um grande pai, um grande filho, um grande marido, um grande fazendeiro, madeireiro ou qualquer outra coisa.

Assim, a própria busca pela felicidade fora do destino pode se tornar algo maléfico para uma pessoa. Para os Yorùbá, se você busca aquilo que não deve ser seu e ou recusa a seguir o seu próprio destino, pode haver um descarrilamento do seu propósito em vida. Os Yorùbá descrevem esse evento como ayò kayò (felicidade infundada). Este tipo pode gerar MUITOS problemas para uma sociedade inteira e é descrita pelos anciãos da sociedade como Ayò níí pa ènìyàn — é a felicidade que mata. Um exemplo disso é: Existe um filme chamado Ṣaworoidẹ, onde o Rei Lapita, ao ser escolhido para reinar em Jogbo, faz toda uma maracutaia para não passar pelos rituais que todo o Rei deve passar, depois de descobrir que seria a única forma dele enriquecer no trono. “Oníjógbó ní ń sin ìlú, ìlú kìí sin Oníjógbó” -É o Rei de Jogbo que serve à cidade e não a cidade que serve ao Rei-. Ao escolher não realizar os rituais sagrados, ele se torna apenas um homem qualquer no trono. Não realizando seu destino como um bom Rei e não alcançando a felicidade como um homem rico e fazendo com que uma comunidade inteira sofra pelo seu egoísmo.

Então, ser feliz (para os Yorùbá) não se trata de buscar uma felicidade a vida inteira, mas sim ter momentos felizes, festejar muito, dançar, comer bastante -a comida inclusive está completamente ligadas a felicidade na forma comos os Yorùbás percebem o mundo. Existem até ditados sobre isso: “Tí ebi bá kúrò nínú ìṣẹ́, ìṣẹ́ bùṣe”- “Quando a fome é tirada da pobreza, a pobreza acaba.” ou “Ebi kìí wọ’nú k’ọ̀ràn mìíràn ó wọ̀ọ́” -“A fome não entra no estômago e permite que qualquer outra coisa entre.”, entre outros Sobre a dança, eu falo um pouco neste texto anterior-. Cumprir as fases desde o nascimento até a idade adulta, se casar e ter herdeiros que vão levar a ancestralidade da sua família através das gerações e finalmente morrer em uma idade já avançada depois de repassar todo o conhecimento adquirido para ajudar os outros a cumprirem com suas missões. Esta pessoa com certeza será celebrada em seu leito de morte pois foi uma pessoa plenamente feliz.

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¹: “O termo ‘cosmovisão’ que é usado no ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta o privilégio ocidental do visutal. É eurocêntrico usá-lo para descrever culturas que podem privilegiar outros sentidos. O termo “cosmopercepção” é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais.”

Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí: Ìyá in philosophical concepts and sociopolitical institutions. What Gender is Motherhood? Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2016, capítulo 3, p. 57–92.

Idowu, Bolaji E. (1996). Olódùmarè: God in Yoruba Religion. Ikeja:Longman Nigeria Plc.

Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí: The invention of Women, Making an African sense of wstern gender discourses. 1997 — Pag 1 a 30.

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